O Operário

Publicado: dezembro 25, 2011 em Contos, Sociedade
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Quando acordava o sol ainda estava por dormir, tranquilo e passivo no horizonte. A aurora pode parecer rejuvenescedora para o camponês, ver as gotículas trasbordando sobre a grama, sentir o ar profundo e cheio de vida, e escutar os cavalos a relincharem como que acordando de um belo sonho; a vida no campo nesta hora da madrugada é uma brecha no tempo, uma intersecção onde só há paz e meditação.

No entanto, eu acordava na cidade grande, rodeado pelo concreto, escondido entre as casas umas em cima das outras. Acordava já aprisionado no ar que cheirava a chumbo petrificado nas grades e nas celas das casas protegidas. Nas cidades ao fim da madrugada só há prostitutas e traficantes, ratos entre as calhas procurando algo de podre, luzes amarelas dos postes se entregando à brisa sangrenta das ruas cobertas pelo lixo. A luz da aurora é esquecida pelo cheiro avarento das riquezas imersas no concreto, escondidas sob o solo.

Acordava, me limpava, me trocava, comia e depois escovava os dentes, tudo isto em um espaço minúsculo, em um único cômodo, esbarrando entre a cama e a pia do banheiro. Insólito, este lugar trasbordava pena e mediocridade, um cubículo de merda!

Eu era um operário, destes que trabalhavam horas a finco em frente há uma máquina que canta e sopra embebedada em óleo lubrificante, grunhi feito um porco seu canto estático, seu ritmo estático, seu manuseio estático. Não há nada neste mundo mais estranho e mais alienado que um operário e sua máquina; duas matérias que se misturam e nessa fluidez fazem mover as roldanas do império, dois movimentos em um fluxo constante de produção, o primeiro um movimento humano, movido pela alma, enquanto que o segundo, é a máquina regida por pregos e metais.

Eu ficava horas com minha máquina, sempre acompanhando seu ritmo, como uma companheira inquebrável, que jamais se entrega. Esta estrutura metálica, que possuía vida própria, bastava um botão para que se alinhasse em constantes movimentos perfeitos e simétricos, infalível na sua perfeição. Esta máquina era parte da minha vida, era minha quinta-essência, nos juntávamos e víamos as horas se jogarem no abismo infinito do tempo.

Um operário meu amigo, é também uma máquina, mas qual é confusão entre estes dois seres, será que sou eu que estou me metamorfoseando em máquina, ou é ela, que por passar tanto tempo em mãos humanas, foi como uma criança, ganhando vida, lembranças e relatos, alma e afeto por mim?

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Todas as sociedades necessitam de organizações e de sistemas, leis e regulamentos, ritos e diplomacias. Hoje em dia a lei pertence ao mais forte, o rito pertence a religião hipócrita, e a diplomacia pertence ao burguês. O patrão já não é mais patrão, ele é agora o homem político, a serviço de outros patrões políticos, uma classe já muito bem consolidada, que vai do plano da política até o plano econômico em um piscar de olhos, como se fossem reflexos em um mesmo espelho.

Uma fábrica é uma pequena vila, uma aldeia industrial. O nosso rito diário é a produção, e nossos deuses – o ser temido – é o patrão. A lei social é obedecer e nunca julgar seu superior, e assim se concentrar em operar sua máquina. O ritual da produção é uma obrigação em transformar a matéria prima em algo inútil, em coisas jamais vista pela natureza. O patrão com seu olhar ganancioso, com seu julgamento prévio de tudo que desconhece, é o detentor do meu corpo, como se fosse um contrato com o diabo; é minha alma escrita que ele possuí, inscrita naqueles inumeráveis objetos inúteis à qual produzo. A cada dia, dentro desta fábrica, sinto sumir algo de mim, como se meu espírito ficasse em cada objeto, como se ele fosse exteriorizado à mim e se transformado em matéria barata, e que depois virará lixo jogado ao mar.

Grandes senhores estes à qual trabalho, um operário nada mais é que um objeto. Não é um criador e nem um artesão, não tem o valor de uma máquina (pois ela vale mais)…o operário é um simples objeto; um homem que se confunde com uma matéria, sem espírito, sem opinião, um cidadão sobre a ditadura das máquinas. Estas são operadas verdadeiramente pelos grandes senhores que as possuem – a máquina é a sua prostituta intocada e eu o seu subalterno.

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Tempos idos e já se passaram vinte anos que eu pertenço a esse vilarejo fabril. Agora já não sou mais confundido com minha máquina, sou apenas seu eterno carrasco, e já nem ligo mais para isso. Depois de tantos anos conheço até seus mais sensíveis pregos, a menor mancha de velhice e ferrugem de suas peças, a quantidade exata de óleo para matar sua sede, conheço seus barulhos e seus problemas, estes idênticos, mesmo depois de vinte anos.

A rotina é o meu viver, o que seria de mim sem minha máquina?

Não poderia mais comer no mesmo prato e nem mesmo abrir a mesma fechadura, chegar no mesmo horário e seguir os mesmos movimentos. Incrível como tudo ao meu redor se alinhou à minha máquina, as pessoas dizem as mesmas coisas, o programa na TV diz sempre o mesmo, os preços estão sempre de acordo com as importações e nas rádios tocam sempre as mesmas músicas.

A beleza da rotina é sensível e, portanto, necessita de seres sensíveis para apreciá-la. Eu, um operário, sou o cúmplice da rotina, sou o coração do sistema, o desgraçado que vê a vida como um quadro sem expressão, inalterado.

Em uma fábrica não há espaço para mudanças. Mudanças sensíveis já causam perdas e prejuízos, e isso deixa o patrão furioso, no fim nos é descontado o pão. De que vale a mudança?

O subsídio é aquele meu salário que se alinha perfeitamente com a minha miséria. Se fosse mais rico não saberia lhe dizer onde gastar o meu dinheiro. Dizem que o país vai de vento em polpa, que estamos ficando mais ricos, e que a farinha agora que se usa no pão é mais nutritiva e de boa qualidade. Sou o operador desta falácia!